Capítulo 2 - Desavenças religiosas
Na missa do meio-dia, uma garota está perdida em sua mente, recostada em um banco ao sul em relação ao altar-mor. Ela não era católica, mas o clima da igreja lhe agradara. O cheiro do incenso, o silêncio acolhedor e a ausência de aglomeração eram umas das coisas que a faziam relaxar em meio à uma multidão de pensamentos.
Os pés abaixo do corpo se mexiam de maneira coordenada, em sentido tesoura. Não queria, porém se sentia impaciente esperando alguém que podia nem ser real. Teve uma conversa outro dia com um ser muito estranho, nunca o tinha visto. De alguma forma, com certa sutileza, conseguiu convencê-la a ter uma conversa mais profunda, lhe daria algumas respostas a perguntas que surgiram em meio à uma abordagem desconfortável.
Interrupção. Uma presença surgiu à sua extrema esquerda, no final do banco. Era ele, àquele a quem encontrara outro dia. Não era ele, porque tinha uma pessoa ao seu lado que não reconhecia por mais que tentasse. Quem era ele, junto à uma presença tão intimidadora e imprevisível como ela? Era ele mais uma menina, que em qualquer outra situação poderia ter sido colega de escola dela.
Um som ambiente ressoava por toda a catedral. O órgão ao fundo, com suas notas graves, pesava a respiração de quem o ouvia. Como se quisesse parar o incômodo gerado no local, o sujeito senta no meio das duas moças, dividindo-se em dois.
Primeiro ato:
- Porã, quem é ela?
- Ela é parte disso.
- Disso?
- Do que a gente veio falar.
- Mas quando falaremos sobre isso?
- Em breve.
- (suspiro)
Segundo ato:
- O que a gente está esperando? Quem é ela?!
- Um minuto.
- Quê?
- Pra procissão começar.
Anima Christi. A vida brota do lado de fora da igreja. Um coletivo de membros de diversas ordens do clero, madres, padres, monges, freiras, freis, abades, abadessas, e mais outros se juntam para a comunhão. De forma inesperada, a liturgia daquela quarta-feira trouxe mais gente que o normal. Uma noviça, de feições ambíguas, senta ao lado de uma das meninas, sorrindo sempre.
- A paz de cristo, irmã. Poderia ceder seu lugar pra eu sentar do lado do rapaz ali, por favor?
- Desculpa, não posso. Tô acompanhando ele.
- Não creio! Você está com o Porã?
- ... Estou?
- Então você deve ser nova! Prazer, Beatriz.
- Prazer...
- E seu nome, coisa linda?
- Ah... Adélia.
- Prazer em conhecê-la! Você não me contou que tinha visita! - nesse momento a moça se dirige à Porã, que apenas a encarava com sua expressão indiferente. A posição em que a devota se esticou para alcançar o rapaz revelou marcas de roupas mais ousadas por debaixo de sua bata, e Adélia não conseguia pensar em mais nada senão naquilo.
- Trouxe duas - e ele se vira para que a outra menina se tornasse visível para Beatriz. Era uma garota ordinária, de baixa estatura e óculos. Seu atributo mais aparente talvez fosse suas mechas claras, que eram surpreendentemente naturais.
- E qual o nome da outra?
- Cecília. - ela interrompe.
- Muito bom estar acompanhada, não acha?
- Não sei ainda.
- Vamos rápido, antes que eles percebam a gente...(risos)
- (sussurro à Porã) perceberem o quê?
- (sussurro à Cecília) a gente.
Discretamente, os quatro se levantaram e se direcionaram para o canto esquerdo da Catedral. Era um lugar grande, com vários adereços típicos de um lugar sacro, mas a moça que guiava o grupo os levou para um simples confessionário de madeira, entalhado com motivos barrocos. Enquanto o resto da comunidade se entregava aos louvores anunciadores da missa, Beatriz abria uma das portas daquele cubículo e entrava, deixando escapar um risinho tosco.
Imagine o seguinte: uma noviça qualquer junto de um grupo de três adolescentes entrava sorrateiramente numa caixa de madeira, escapando feições maliciosas. Contudo, o mais estranho fato era de que o menino gesticulava ao passo que contornava as meninas com um de seus braços, tal qual uma preguiça protege seu filhote para uma sesta vespertina.
- O que você está fazendo, Porã?
- Escondendo a gente, porque essa freira costuma ser muito escandalosa.
Cecília reparava em algo que parecia sair dos dedos do sujeito. Era uma substância plasmática, gasosa, irradiante e esmaecente ao mesmo tempo, segundo as descrições dela mesma numa carta posterior à família. Infelizmente, a menina era a única espectadora desse evento, uma vez que eles estavam invisíveis ao público eclesiástico; além disso, Adélia não via o que ocorria pois estava mais ocupada tentando conciliar a repugnância que já adquiriu conversando com essas novas integrantes.
- Escutem! Entrem um de cada vez, e não cruzem os dedos! - ordenou Beatriz, com um tom surpreendentemente superior.
- Deixem que eu fico por último para ajudar caso dê algum problema. - disse Porã.
- Para você é fácil falar para a gente ir primeiro, não vai ser você que vai ser cobaia dessa maluca... - afirmou Adélia, esbravecida.
- Que cobaia, menina? Você acha mesmo que se eu fosse usar alguma cobaia eu ia escolher uma insuportável como você? Se quiser ir embora a porta da rua é serventia da casa! Ninguém faz questão de você não. - disse Beatriz, sem paciência.
- Olha aqui! Se você é uma puta que fica usando lingerie debaixo de uma bata, bancando a "madre Teresa", achando que pode mandar e desmandar em qualquer um só porque você quer, me desculpa, mas eu não vim aqui por sua causa. Eu só estou aqui para tirar umas dúvidas, porém eu te garanto que quando eu conseguir o que eu quero você nem vai lembrar que eu existo! - falou Adélia.
- Seria o meu sonho. - murmurou Beatriz.
- Gente, eu posso ir primeiro se não tiver nenhum problema... - disse Cecília, meio intimidada pela discussão das duas.
- Beleza. - confirmou Porã.
- Finalmente alguém que tem o mínimo de decência! Gostei de você, menina, pode entrar. - afirmou Beatriz com uma voz animada.
Dentro do confessionário, os entalhes pareciam contar uma história: no teto, uma representação das constelações e da Estrela d'Alva, anunciando o nascimento de Jesus. A parede lateral e a do fundo continuavam: todos os animais do rebanho vinham para ver o Messias, que apontava para a parede da direita. Essa, em especial, tinha uma porta branca como uma lâmpada, sem o incômodo de cansar a vista. Não tinha maçanetas, nem umbrais, nem batentes - era como uma janela impossível.
Cecília deu um pulo para trás quando viu o inusitado; respirou profundamente, e continuou seu caminho para o portal. Beatriz estava atrás dela naquela caixa, de forma a manter aquela entrada aberta. Esse momento não durou mais que alguns segundos, contudo a menina não deixou de perceber uma folha de laranjeira no chão, antes de passar pela abertura.
Em um instante, ela não sentia mais seu corpo. Seus sistemas se dissolviam em orgãos, os quais se dissolviam em tecidos, que se dissolviam em células, moléculas, átomos, íons, quarks; quase nada. Eram nano pontinhos se deslocando por uma passagem desconhecida, inumana, inexplicavelmente infinita. Uma característica, contudo, permanecia: o aroma. O cheiro remetia à uma mata fechada, um litoral inóspito, cheiro de chuva. Logo logo a matéria se condensava novamente, e Cecília começava a abrir seus olhos para ver um novo ambiente.
ansiosa pra continuação, adorei os diálogos tanta diversão nessa catedral
ResponderExcluir