Capítulo 1 - Semanário efêmero

    Refletido num olho castanho-escuro, está Maria sendo reprimida pelos guardas do imperador romano. Não, não é isso. Uma menina sai, aos berros, de uma galeria de arte, cheia de quadros na mão e mãos a acompanhando. Não gentilmente, mas empurrões e descortesias eram atiradas na jovem. Por isso parecia mártir - porque em seu colo carregava vida, contudo seus olhos deslumbravam a miséria.
Um rapaz, desapercebido pela maioria, vai de encontro à ela, tentar ajudar. Quem era ele, nem eu sabia, e ela muito menos. Foi algo assim:

Ele: - Precisa de ajuda?
Ela: - ...? Quem é você?
Ele: - Uma ajuda. Meu nome é Porã.
Ela: - ...Muito obrigada, mas eu posso cuidar disso sozinha.
Ele: - Deixa eu só pegar esse quadro aqui... tá caindo...! Toma.
Ela: - ...Obrigada, desculpa ter sido tão ignorante. Meu nome é Adélia.
Ele: - Tudo bem.
Ela: - É que hoje tem sido um dia difícil, muita coisa acontecendo.
Ele: - Algo a ver com os quadros?
Ela: - Sim. É que hoje era minha primeira exposição... eu estava nervosa, não lembrava direito do que eu ia falar.
Ele: - Por isso te tiraram de lá?
Ela: - Não! Quero dizer, não sei. Eu só sei que de uma hora para outra eu tava sendo puxada, fui expulsa de lá.
- Entendi.
- Entendeu o quê?
- O que você falou.
- Ah tá.
- Ninguém achou estranho te tirarem de lá do nada?
- Acho que ninguém estava querendo eu lá.
- E todo mundo quis te tirar de lá porque você estava nervosa?
- Sei lá, eu não entendi, não sei explicar.
- Entendi.
- ...
- Tava falando com um menino que tava na exposição, ele disse que o clima lá tava péssimo.
- Claro, um monte de gente me tirando de lá a força.
- Antes; ele me disse que não conseguia olhar para os quadros direito, dava vertigem.
- Como assim???
- Ele não explicou direito, mas disse que os desenhos deixaram ele nervoso e com medo, e que as espirais giravam e giravam e giravam até deixá-lo tonto.
- Nossa, que ideia...
- Teve até uma ambulância, você não viu?
- Ambulância? Não.
- Umas idosas foram levadas de lá, por isso tinha tanta gente do lado de fora.
- Por isso me tiraram de lá?
- Talvez. Acho que era porque tava tudo acontecendo ao mesmo tempo.
- É... bem estranho.
- Como se o que você tivesse sentindo afetasse o ambiente.
- Hã?
- Não percebe? Você tava mal, o ambiente ficou mal.
- Não vejo assim. Acho que você está divagando.
O fato é muito específico para ser só coincidência, você tem que concordar.
- É, nem por isso eu fui a causa de tudo isso. Tenho que ir, prazer em te conhecer.
- Espera. Vou te mostrar uma coisa e você me diz se é divagação.
- O quê?
- Não aqui né, todo mundo olhando pra você.

    A menina olha de relance e o mundo devolve o olhar para ela; ela percebe que todos a acompanhavam com as pupilas, dilatadas e anestesiadas, como se ela fosse a obra de arte, e eles, os críticos. Quando a arte percebe, a arte critica e vira crítico e crítico vira nada. Ninguém mais olhava para ela; todos, de maneira sincronizada, esqueceram a menina e foram viver a vida como se ela fosse eles. O coração dela parou por um segundo.

- E-eles... estavam ouvindo a g-gente??
- Vem, vou lhe mostrar o que eu queria lhe mostrar.

    A galeria ficava num parque. No lado mais extremo, à direita, ficavam os banheiros, e um beco onde os jardineiros guardavam seus equipamentos. Lá era lugar bom para não serem vistos, iam lá para outras coisas.

- N-nem pense em tentar algo comigo, nem te conheço.
- Não vou tentar nada, só olhe.

    Era um jovem bonito. Mais alto que ela, corpo atlético, altura razoável. Esse era Porã de olhos fechados na frente dela, parecendo estar se forçando a pensar em algo. O ar fica rarefeito, a brisa fica mais forte, e Porã vira porã, porãzinho, porã-nada, nada e ar. Ela congelou, congelou como se visse fantasma. E tinha visto mesmo; viu homem-menino tornar-se vácuo, o antigo Porã de segundos atrás. O que para ela foi minutos de histeria interna e assombração, foi segundos para que o nada voltasse a ser Porã de novo, matéria invisível encarnando em realidade.

- C-como voc-cê fez i-isso???
- Treino. Eu sumia de vez em quando, achava que me ignoravam. Quando me dei conta e olhei no espelho, não me vi. Hoje eu sei desaparecer e aparecer quando quero, e vim te convidar a fazer o mesmo.
- A ficar invisível?????
- A controlar seus poderes.
- ???
- Tem um lugar, aqui por perto, que você pode treinar esses dons. Eu sou de lá, tô formalmente lhe convidando.
- Eu tô perdida, como assim poderes?
- Escuta aqui, e presta bem atenção - ele até se aproximou do ouvido dela; dava cócegas - você é especial e precisa aprender a se comportar como tal.
- ... - ela não sabia dizer nada.
- Pegue isso, anote no seu celular e queime. Tem uma semana pra ficar pronta, te mando o endereço depois.
- O que é isso? - um papel amassado, com números aparentemente desconexos, e o nome dele por cima.
- Meu contato. Tenho que ir, até logo.
- Espera! Eu não entendi ainda - e nesse momento ele se mistura no povo, e tal qual joio no trigo ele se escondeu direitinho - essa coisa de poder...

           Porã
           457-3*410#
                                

 (Que número esquisito... nunca vi ninguém com asterisco e jogo-da-velha no próprio contato)

    Uma semana era o prazo para se preparar para deus-sabe-o-quê. Tentou discar o número, logo em seguida dele sumir, o número não existia. Uma semana era o prazo para mentiras se tornarem verdade. Ela, no meio do parque, agora abandonada, não tinha ideia do que iria fazer depois que tomasse o primeiro passo. Uma semana para que passos virem corridas, corridas virem voos, voos virem passos. Maritacas cantavam naquela tarde de quarta-feira, o dia estava incrivelmente laranja. Uma semana.
    Voltou para casa como se voltasse da guerra, despencou do precipício em sua cama, fechou as duas escotilhas do rosto; dormir era fugir do campo de batalha, pelo menos por hoje. Amanhã virou hoje e a menina nem percebeu.
    Quinta-feira foi a sua segunda-feira. Acordou assustada, não distinguia as coisas direito, não lembrava onde estava. A parede balançava como se fosse gelatinosa, o piso era líquido. Quando isso acontecia, dez segundos era preciso para seu mantra funcionar; "Eu existo e me faço presente. Eu existo e me faço presente.". A casa estava bonita de novo, e a mãe batendo na porta. 

- Vem tomar café.
- Tô indo, pera.

    O dia foi pensamental. Só lembrava daquele menino estranho, do jeito curto dele e dos olhos escuros. Ela, que sempre achou conhecer as pessoas, olhava para ele e via nada. Se a mãe a visse suspirar por meninos, pensaria que era coisa de verão, amor bobinho. Ela suspirava sim, suspirava de exaustão. E a quarta batia na porta, e ela pedindo para esperar. Já era sexta-feira.                
    Decorou todos aqueles números e símbolos do papel avulso. Não podia apenas salvá-lo, tinha que saber de cabeça. Quem sabe, um dia, poderia usar isso contra ele. Nunca se sabe. O papel queimou, parecia que ele queria ser queimado, visto sua implicância com esse mundo que nunca o recebeu bem. Amassado em um bolso, transpassado de mão em mão, deixado ao léu - o céu o trataria melhor.
    Sábado é o dia do descanso, por isso nem se deu ao trabalho; a cama a acariciava tanto que era melhor ficar por lá mesmo. Passava um filme na televisão, de um casal inventado que se tornava real a medida que os dois se conheciam. Na dança dos astros, sol e lua giravam tão rápido que segunda chegou e parecia domingo. O terror se alastra.
    Apenas dois dias para o fatídico evento. O suor descia-lhe o rosto quando pensava que as coisas podiam ser sérias. Ela ria pensando que podia ser uma piada de mal-gosto. Ponderava se aquilo tivesse sido apenas uma cantada diferente de um menino tímido. No final, não se tinha conclusão. Teria que se preparar para tudo, até mesmo para sua morte, do jeito que era dramática. Fez uma lista para lembrar do que precisaria para todos os efeitos:

- Canivete OK
-  457-3*410# OK
- Manteiga-de-cacau 
- Blusa
- Celular OK
- Dinheiro
- Fim?

    Foi aí que uma ideia fixou em sua cabeça. Poderia ser o fim de tudo o que construíra ao longo de sua vida. Ela podia não voltar nunca mais. Certificou-se de mandar mensagem para todos os seus amigos, escreveu uma carta de três páginas para a mãe e de cinco para o tio (tentou lhe explicar o ocorrido do jeito que sabia, ele parecia entendê-la melhor). Para terça, escolheu se manter mentalmente estável.
   O dia. Era madrugada, ela sonhando até o telefone tocar; era ele. O telefone não mentia, era o número que outrora não existia. Sua voz não perguntava por ela, não queria saber dela, só queria saber da mensagem. "Meio-dia, me encontra na Praça da Sé. Te explico lá o que você vai fazer.", e desligou. Uma condolência, um afago, um cumprimento - nada disso passou pelas palavras dele. Ele não sentia nada por ela, a possibilidade de uma declaração foi posta em descarte. Se era brincadeira ou seriedade, ela só descobriria quando pusesse os pés lá. O relógio apita: são onze e meia, ela em pé na frente da catedral.
    A mesma sensação de uma semana atrás começou a persegui-la: os olhos de todos se focavam nela, o ar ficou pesado, as luzes se apagaram, e ela só via faroletes de escleras a fitando, a consumindo, a deprimindo, a derrubando. O mantra veio de novo, como uma muleta mental, mas nem ele era capaz de impedir a opressão demoníaca do ambiente. Ela não soube quanto tempo passou, mas se dissesse que ficou horas paralisada por aqueles olhares não seria exagero.
    Uma mão a tocou e tudo voltou a acontecer num piscar de olhos. Estava de novo perto de uma loja, sentada num banco, e Porã com a palma recostada em seu ombro.

- Tudo bem?
- Tudo. Achei que você não vinha.
- Claro que eu vinha. Eu que marquei.
- Eu sei. Por um momento pensei que você tivesse me zoando, sei lá.
- Vamos, vou te levar ao início de tudo.
 
E o portal da igreja recebia mais dois visitantes, dois curiosos indivíduos daqueles que pertencem a todo lugar e ao mesmo tempo a lugar nenhum. Eles pertenciam à igreja agora, e só aquilo importava.

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